A escolha pela Medicina, considerada vocação por muitos, tem diferentes razões. Desde a curiosidade pelo corpo humano e seu funcionamento, a uma busca por ajudar os outros, escolher essa ciência como profissão tem como vontade prover cura. Mas e quando esta não é possível, sentirá o médico, portanto, que seu papel acaba ali?
Uma famosa frase atribuída a filósofos variados diz que “a medicina deve curar algumas vezes, aliviar quase sempre e consolar sempre”. A ideia é antiga, mas nem sempre compreendida. Quando o paciente possui necessidades específicas, o olhar para a deficiência parece fazer uma sombra, apagando o indivíduo. O diferente visto como falta, defeito ou dificuldade é fruto de uma medicina que reproduz o mesmo olhar de uma sociedade capacitista. Para estas pessoas, o alívio e o consolo geralmente se perdem.
Sofia, uma jovem de 30 anos, estava com uma dor na perna há dois dias. Quando notou um inchaço importante na região, buscou uma avaliação em pronto-socorro. Seu pai a levou e foi indagado sobre os sintomas da filha, apesar de Sofia poder referir o que a incomodava. O diagnóstico? Uma infecção de pele, chamada celulite bacteriana. O atestado? “Atesto para os devidos fins que a paciente deverá ser afastada do trabalho por problemas mentais”. O que faltou dizer é que Sofia possui síndrome de Down, uma condição genética, que tem entre suas características a deficiência intelectual.
Qual a relação desta síndrome, problemas mentais e a infecção de pele? Nenhuma. A incapacidade de nomenclatura correta mostra o preconceito velado com o qual a medicina com frequência enxerga o diferente. Neste atendimento, não só houve uma mistura de questões psiquiátricas com alterações no neurodesenvolvimento, que impactam aspectos cognitivos do indivíduo, como também com o quadro agudo.
Deficiência não é falta de saúde, muito menos implica sofrimento certo. Já a doença mental interfere na interação com o mundo e no comportamento a partir de alterações de ordem psíquica, levando a sofrimento. O que impede os médicos de direcionarem ao paciente com deficiência suas queixas? Por que, indubitavelmente, não se dá oportunidade de interpretarmos as queixas pelo olhar de quem tem a deficiência e abordar suas necessidades? E, por fim, por que tiramos conclusões a partir de nossos vieses, assumindo existir problemas onde não há? A resposta para isso está em reconhecer a neurodiversidade.
Muitos de nós fomos treinados a reconhecer a deficiência, como o próprio nome diz, no modelo do déficit. A estrutura destes moldes vê estas pessoas sempre com faltas e limitações e se estende para uma visão de que seriam doentes e insuficientes. O modelo da neurodiversidade passa a repensar o mundo como o definimos e enxergá-lo com outra lente. Se caminhamos para uma sociedade que valida a diversidade de gênero, de raça, de sexualidade, de religião, entre outros, por que não validar a diversidade neurobiológica? Por exemplo, se pessoas com síndrome de Down podem ter dificuldades em entender nuances de entonação ou comunicação como ironias, costumam ter facilidade com tarefas que exigem rotinas e regras.
É claro que existem inúmeros desafios em criar um filho com qualquer deficiência, mas naturalizar a diversidade parece oferecer conforto ao longo da caminhada. Entretanto, não é o que muitos pais encontram. Desde o primeiro contato com um diagnóstico, a partir da notícia vinda de médicos, a literatura mostra o quão negativo é o impacto destas falas. Impacto este que atravessa os anos, sendo lembrado pelas famílias de forma muito vívida. As consequências recaem sobre o vínculo e, até mesmo, sobre o engajamento com as terapias que podem promover o potencial daquele indivíduo.
Pesquisas que avaliaram a forma com que tais notícias foram dadas a pais de pessoas com síndrome de Down revelam que os médicos não sabem ouvir em quase metade das vezes, não mostram carinho e preocupação em 40% das vezes e não se mostram disponíveis para conversas posteriores em um terço das situações. Outros estudos mostram que durante a formação, menos de 1/5 dos residentes recebe alguma orientação a respeito do que e como falar.
Ao nos comunicarmos, é comum usarmos, até mesmo inadvertidamente, expressões negativas e promovermos estereótipos. Se a Medicina realmente olha esses indivíduos como um peso à sociedade ou como pessoas de menor valor, como pode acolher e confortar essas famílias? E mais, como atender às necessidades dessas pessoas, levando em consideração suas demandas?
No processo de naturalizar a deficiência é preciso entender que essa característica não é definidora. Assim, como suas limitações não se sobrepõem ao indivíduo, grupos de pessoas com deficiências semelhantes não serão todos iguais. Existem limitações em níveis variados, mas também habilidades únicas a cada um. Também não é possível separar a deficiência de quem a carrega, como se buscássemos “consertá-lo” ou alcançar um momento em que esta diferença não existirá.
Como médicos, precisamos auxiliar famílias e pacientes a entender suas necessidades específicas, não só para manejar os desafios e dificuldades, mas também para fortalecer e potencializar suas habilidades. Entender este complexo funcionamento de quem não se encaixa no padrão é um caminho mais trabalhoso, mas necessário para diminuir sofrimento e permitir desenvolvimento.
Entender a neurodiversidade passa por desconstruir conceitos pouco intuitivos para muitos. As dificuldades experimentadas por quem denominamos deficientes podem mudar a depender do contexto. Quanto mais acessível e inclusiva for uma sociedade, menor se torna a dificuldade. Estaria, portanto, o déficit mais na sociedade ou no indivíduo? Imaginem um mundo em que 90% da população fosse surda. Pouco provável que existisse linguagem verbal. Se esse mesmo mundo fosse extremamente barulhento, aquele que escutasse bem iria se incomodar mais e a surdez pareceria vantajosa.
Para aqueles que vivem e enxergam o mundo de uma maneira diferente do considerado padrão, buscar suas demandas é crucial para o acesso à saúde. Demandas pautadas pelas suas necessidades específicas e não pelos vieses do capacitismo. Não há como separar a caminhada da inclusão de uma transformação do modelo médico. Deficiência é sobre todos nós.
Relatora:
Anna Dominguez Bohn
Vice-Presidente do Núcleo de Estudos sobre a Criança e o Adolescente com Deficiência da Sociedade de Pediatria de São Paulo
Membro do Grupo Médico Assistencial da Deficiência Intelectual do Hospital Israelita Albert Einstein
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