Vivendo e aprendendo. Quando eu era criança, minha mãe lia histórias infantis e contos de fadas para os filhos. Quando fui pai, repeti com os meus filhos o que aprendi e vivenciei – li livros infantis para eles. Eu sabia que era uma coisa boa e agora a ciência consegue explicar porquê isso é bom.
A criança vivencia o mundo concreto de forma diferente. Às vezes, a mãezinha querida que a acolhe e a enche de beijos e carinho pode se transformar, de repente, na madrasta má, personagem malévola dos contos de fadas, só porque em dado momento a criança se sentiu humilhada por ter recebido uma bronca, por ter molhado acidentalmente as calças, por exemplo. “Como pode a minha própria mãe agir de modo totalmente diferente?” A criança pequena experimenta o mundo como inteiramente gracioso ou como um total inferno; é como ela coloca alguma ordem em sua visão de mundo – dividindo tudo em opostos.
Os contos de fadas podem ajudar a criança na solução de problemas difíceis de entender como este, do exemplo acima. Nesta situação, a criança, ao ouvir a narrativa de uma história, pode criar duas personagens separadas em sua mente: a ‘mãezinha querida’ e a ‘madrasta má’. A fantasia da ‘madrasta má’ não só conserva intacta a mãe boa, como também impede os sentimentos de culpa em relação aos pensamentos e desejos coléricos a seu respeito – uma culpa que interferiria seriamente na boa relação com a mãe.
As crianças consideram as histórias reais, verídicas e acreditam que possam ocorrer de fato. De acordo com Bruno Bettelheim: “os contos de fadas retratam de forma simbólica os passos essenciais para o crescimento e para a aquisição de uma existência independente”. (pg.106)
Os personagens dos contos de fadas são unidimensionais: são a ferocidade encarnada ou a benevolência altruísta. Um animal ou é só devorador ou só prestativo. Isso possibilita à criança compreender com facilidade suas ações e reações, por meio de imagens simples e diretas. Estas histórias ajudam a criança a organizar seus sentimentos complexos e ambivalentes, de modo que cada um começa a ocupar um lugar separado, em vez de serem todos uma grande mistura.
“Até mesmo Freud não encontrou melhor maneira de ajudar a dar sentido à incrível mistura de contradições que coexistem em nossas mentes e vidas interiores do que criar símbolos para aspectos isolados da personalidade. Chamou-os de id, ego e superego. Se nós, como adultos, temos que recorrer à criação de instâncias separadas para trazer alguma ordem sensível ao caos de nossas experiências interiores, quão maior é essa necessidade na criança!”. (pg. 108)
As abstrações criadas por Freud parecem “entidades” separadas, que muitas vezes são contraditórias. Esses conceitos podem ser abstratos e algumas vezes são convenientes para lidar com ideias que, sem serem “colocadas para fora, seriam difíceis de ser compreendidas. Na realidade, não há nenhuma separação entre elas, assim como não há separação entre corpo e mente.
Essas reflexões não são muito diferentes das imagens e símbolos dos contos de fadas.
Saiba mais:
As páginas assinaladas no corpo deste texto se referem ao livro que recomendo fortemente a leitura: A psicanálise dos contos de fadas. Bruno Bettelheim; tradução Arlene Caetano. 44ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2023.
Relator:
Fernando MF Oliveira
Coordenador do Blog Pediatra Orienta da SPSP
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